Por que demoramos perceber situações de abuso em relações afetivas?
- Ronaldo Patrício
- 14 de set.
- 3 min de leitura
Atualizado: 19 de set.

Contam que se um sapo for jogado em água quente, ele saltará para fora imediatamente, mas se for colocado em água fria, que será aquecida pouco a pouco, ele não perceberá a mudança e morrerá cozido. Aviso importante: por favor, não façam essa experiência em casa.
Trago essa metáfora para explicar a tendência que algumas pessoas têm de se acostumarem a situações negativas e hostis sem reagir, até que seja tarde demais. Se você já viveu uma experiência assim, lamento sinceramente.
A dificuldade em perceber sinais de abuso em relações que envolvem afetos, sejam elas entre familiares ou de amizade, namoro ou casamento, é um fenômeno comum e devastador, e as razões são profundas e interligadas.
Raramente o abuso começa de forma explícita. Ele é um processo lento de erosão, semelhante à lenda do sapo que contei acima. Inicia-se sutilmente com pequenos comentários críticos, ou piadas às suas custas que disfarçam a hostilidade, ou pequenos comportamentos controladores, ou tudo isso simultaneamente.
Aquela amizade antiga que, pelo fato de desfrutar de sua intimidade, questiona uma escolha importante que você acabou de fazer. Opinião que não foi solicitada e que pode ter a intenção subliminar de invalidar sua decisão, por lhe achar incapaz de conduzir a própria vida, é um exemplo.
Como esses comportamentos surgem misturados com gestos de amor e amizade, a vítima vai normalizando e minimizando, tipo: “É só uma brincadeira” ou “Não foi por mal”. Com o tempo, tais comportamentos tornam-se mais frequentes e intensos, mas a vítima já está tão imersa na dinâmica que não percebe a gravidade.
Em relações próximas, o amor e o abuso tornam-se entrelaçados, criando uma grande confusão mental e emocional.

"Mas é família" ou "O amor tudo suporta" são frases usadas para normalizar e perpetuar dinâmicas tóxicas, fazendo com que a vítima sinta que é sua obrigação suportar o abuso em nome do "amor familiar" ou da "amizade verdadeira", ou do casamento.
Em alguns casos, a vítima pode temer as consequências do confronto ao abuso, desgaste que poderá levar a uma rejeição, ao abandono ou a uma ruptura definitiva.
Se a relação é com o pai/mãe ou amizade muita próxima, a identidade e o bem-estar emocional da vítima podem estar profundamente ligados a essa pessoa. Reconhecer o abuso significaria ter de reavaliar toda a sua história e suporte emocional, além de lidar com a decepção e o abalo da confiança.
Não raro, o entorno social pode, inadvertidamente, validar a pessoa que pratica o abuso e invalidar a vítima. Familiares e amigos podem pressionar a pessoa que sofre a agressão a perdoar e a esquecer, minimizando a gravidade da violência em nome da "harmonia familiar" ou da “amizade”.
A verdade é que o abuso emocional é invisível e se configura em violência. Sem hematomas físicos, é fácil para os outros descartarem as preocupações da vítima, julgando-as "sensibilidade excessiva" ou "dramatização".
O próprio abuso corrói a capacidade da vítima de confiar na sua própria percepção, dado que mina a autoestima e a autoconfiança.
Perceber que há sinais de abuso em relações de afeto é como tentar ver o ar que se respira: está em todo o lado, mas é quase invisível porque se tornou o "normal" para aquela pessoa. A mistura de amor e medo, a dependência emocional, a manipulação sutil e a pressão social criam uma cortina de fumaça que obscurece a realidade dessa violência.
Mais do que nunca é urgente estabelecermos relacionamentos saudáveis, que se pautem, antes de tudo, pelo respeito e consideração mútuos.
A dinâmica na construção de uma relação madura envolve o exercício de percebermos e distinguirmos a importância do envolvimento para o nosso crescimento, enquanto seres humanos.
A chave para romper o ciclo de abusos é muitas vezes a educação sobre o que constitui um relacionamento saudável e a validação por parte de alguém de fora, como um terapeuta ou psicanalista de confiança, por exemplo, que possa lhe ajudar a perceber que não existe mais espaço, nem tempo para comportamentos inapropriados. Eles não podem mais serem vistos como normais, nem aceitáveis, mesmo que venham de pessoas que sugerem nos amar.
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