Acordos feitos na infância para sobreviver a um ambiente hostil e seus impactos na vida adulta
- Ronaldo Patrício
- 21 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 3 de set.

Quem sobreviveu a um ambiente hostil na infância ou adolescência pode levar para a vida os acordos internos que precisou fazer. Como um recurso de autopreservação, a mente desse ser em formação precisou elaborar mecanismos para garantir a própria existência. A violência doméstica contra crianças e adolescentes não tem classe social, raça ou credo. Infelizmente, é no abrigo de uma casa, no seio da família, em que ela mais se manifesta, justamente pelas pessoas responsáveis em protegê-las.
Resistir a um ambiente familiar hostil na infância muitas vezes exige a criação de “acordos internos”, que são estratégias de adaptação psicológica, emocional e até física que podem persistir na vida adulta, mesmo quando já não são necessários. Esses acordos, inicialmente formas de proteção, podem se tornar padrões inconscientes que influenciam nos relacionamentos, na autoimagem e na visão de mundo.
Podemos identificar esses acordos nos contratos inconscientes que a criança estabelece para lidar com a dor, o medo ou a falta de segurança. Uma pessoa que acredita que precisa ser perfeita, para se sentir amada, logo tem obsessão por perfeccionismo e autocobrança excessiva.
A pessoa que tem dificuldade de criar vínculo de intimidade emocional, pode ter sido aquela criança que perdeu a confiança nos adultos, com medo de ser traída. Ou mesmo outra que desenvolveu uma personalidade extremamente reservada, certamente precisou se tornar invisível na infância, para não ser machucada. Por fim, e, talvez, a mais conhecida, temos aquele indivíduo que busca agradar a todos, para se sentir seguro, ele pode ter criado esse padrão inconsciente de comportamento para obter validação externa.
Outras consequências no comportamento de pessoas adultas nessas condições podem ser identificadas por repetição de padrões. Por exemplo, aquelas que sofreram abandono na infância, podem inconscientemente buscar parceiros emocionalmente indisponíveis, repetindo a dinâmica familiar. Já as hipervigilantes são aquelas que cresceram em ambientes imprevisíveis, elas podem desenvolver transtorno de ansiedade generalizada, sempre esperando o pior. Nesse caso, podem desenvolver episódios de insônia.
Dificuldade em regular emoções: se a criança não teve exemplos saudáveis de como lidar com raiva ou tristeza, pode reprimir ou explodir emocionalmente. Por fim, a autopunição: que remete aos pactos criados como “Eu mereço sofrer” e podem levar a comportamentos autodestrutivos.
É bastante injusto passarmos uma vida sem reconhecer esses mecanismos que nos prendem a uma armadilha invisível. O que antes nos salvou no passado, hoje, pode ser o que nos impede de avançar, expandir e construir uma vida mais sustentável.

Por experiência própria, acredito ser possível reescrever esses acordos, sim. Por meio de exames de consciência, coragem e, muitas vezes, apoio psicanalítico, são alguns caminhos possíveis.
Durante o processo analítico, a pessoa pode identificar quais são esses acordos ocultos e perguntar-se e refletir sobre a questão: o que precisou acreditar para sobreviver na sua infância? Questionar-se se eles ainda funcionam. Às vezes, aprendemos que mostrar fraqueza é perigoso e isso pode nos privar de vínculos profundos.
Costumo dizer que é possível exercitarmos em nós a paternagem e a maternagem que não tivemos na infância, a começar pelo autocuidado, autoaceitação, sermos pacientes e gentis conosco e observar os limites saudáveis que podemos ter.
Somos capazes de nutrir relacionamentos seguros, sejam eles terapêuticos, amorosos ou de amizade, reprogramando crenças internas e estabelecendo um parâmetro de maturidade nas trocas afetivas.
Perceber que a cura não significa apagar o passado, mas reescrevê-lo, podendo dar um outro significado, pois a dor que se viveu na infância não desaparece, mas pode deixar de governar nossas vidas.
Os acordos internos da infância são como cicatrizes psíquicas, não somem, mas podem ser ressignificadas. O trabalho de autoconhecimento, por meio da Psicanálise, não é sobre apagar o passado, mas sobre liberar-se da tirania dele.
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